A História da Saúde Mental no nosso país ainda está por escrever e, nesse trabalho indispensável, João dos Santos teria um imenso papel no enredo. Ele representou e, de certa forma representa, a mudança. Começou a sua formação Médico-Pedagógica, rompeu com ela e ajudou a construir uma Pedopsiquiatria inspirada na Psicologia Dinâmica e, por fim, concebeu a Pedagogia Terapêutica com ramificações nessas duas zonas. A liberdade, pessoal e profissional, permitiu-lhe não só o paradoxo, como a edificação de uma saúde mental infantil moderna, preocupada com a prevenção e ligada à comunidade. Lembramos o trabalho que fez no Centro Materno-Infantil Sofia Abecassis, ou a marca de transformação, que simbolizou o Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil. A Dra. Maria José Vidigal escreveu e disse que “a sua atitude permitiu uma tal viragem que se pode dizer que há um antes e depois de João dos Santos”.
Nos anos 50, quando volta de Paris, João dos Santos tinha efectuado diferentes formações – especializando-se no diagnóstico da criança e da família – tornando-se Psicanalista. Assim, com uma preparação científica ímpar em Portugal, desenvolve trabalho em duas grandes áreas: a criação de serviços, associações sociais, sem participação estatal, que serviram o protótipo para a multiplicidade de instituições particulares de solidariedade social que hoje encontramos, e o trabalho no Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil, uma verdadeira revolução nos processos de trabalho, inspirada no Centro do 13º Bairro de Paris, onde João dos Santos tinha trabalhado. Maria Belo chamou ao Centro de Lisboa um “oásis” na saúde mental portuguesa, em carta ao então Primeiro-ministro Cavaco Silva, já que este extinguia o Centro e mudava-o para Departamento. No fim dos anos 90, Serge Lebovici, de quem João dos Santos era amigo e com quem trabalhara, disse-me numa troca de e-mails, que “dos Santos” tinha efectuado grandes e importantes avanços na saúde mental portuguesa, mas que a sua verdadeira quezília tinha sido com a Ditadura. Foi um homem atento e interventivo na sociedade – participou no Congresso dos Intelectuais pela Paz, pertenceu à Seara Nova – interessado nas artes – escreveu poemas e tem descrições muito interessantes da cidade de Lisboa. Tinha um gosto profundo pela Natureza e pelos desportos que lhe vinha da infância – a primeira licenciatura que fez foi Educação Física – era disponível a novas experiências, como o yoga, que praticava antes de ir trabalhar. Tudo isto e muito mais. No que nos toca, particularmente, pode dizer-se que a Psicanálise esteve presente em todo o trabalho que desenvolveu. Parte para França em 1946, devido a um saneamento político, e aí estabelece contactos com várias personalidades do movimento psicanalítico francês, como a Princesa Marie Bonaparte. Em 1947, é admitido pela comissão de ensino da Sociedade Psicanalítica de Paris, uma das mais influentes a nível mundial. Faz a sua formação com Serge Lebovici, René Diatkine, Sacha Nacht, Jaques Lacan, entre outros. Mais tarde, completada a sua formação, é admitido como membro da Associação Internacional de Psicanálise. Foi fundador da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, membro didacta e o principal formador de Psicanalistas de crianças. Introduz os seus conhecimentos psicanalíticos na saúde mental infantil e desperta o interesse dos profissionais pela teoria e técnica psicanalítica. Assim, inicia psicanálises a Médicos; Psicólogos e Assistentes Sociais. A ausência física não fez esquecer as ideias, agora que se comemoram 100 anos do nascimento de João dos Santos, a APPSI e a IARPP-Portugal homenagearam-no no Colóquio realizado em Tavira, “Saúde Mental, Desenvolvimento e Educação”. Porém, João dos Santos é uma referência profissional e daí o seu nome ter sido dado ao seminário do 1º ano de formação em psicoterapia psicanalítica da APPSI.
Citando C.G. Jung, no seu livro de memórias, “A minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento”. À vida, obra e herança de João dos Santos pode aplicar-se esta ideia. Diria que é nossa feição dar-lhe continuidade.
Filipe Baptista-Bastos