Entrevista a Robert D. Stolorow(1,2)
Alejandro Ávila(3) e David Figueirôa(4)
Entrevistámos Robert Stolorow em Madrid no contexto de uma conferência que realizou a 30 de Junho de 2012, no quadro da formação proporcionada pela Ágora Relacional de Madrid com a IARPP – Espanha. Stolorow é um dos nomes maiores da psicanálise contemporânea e, em particular, da corrente relacional. É doutorado em psicologia clínica (Harvard) e em filosofia (Califórnia) e membro fundador do Institute of Contemporany Psychoanalysis, em Los Angeles, e também do Institute for the Psychoanalytic Study of Subjectivity, em Nova Iorque. Tem cerca de uma dezena de livros publicados e inúmeros artigos. Stolorow desenvolveu, com George Atwood, Donna Orange e Bernard Brandchaft, entre outros, a teoria intersubjectiva em psicanálise, um dos eixos do modelo relacional, que desvela a natureza intersubjectiva radical da relação analítica, onde se encontram dois Sujeitos: “A psicanálise procura clarificar os fenómenos que emergem dentro de um campo psicológico específico constituído por duas subjectividades – a do paciente e a do analista”. A citação é de uma das obras fundadoras da teoria intersubjectiva, Structures of Subjectivity, de 1984, onde foi introduzido o termo “campo intersubjectivo” sobre a relação analítica. Daí em diante, toda a sua obra aprofunda o conhecimento e conceptualiza sobre a natureza desta relação particular, mutuamente constituída e de influência recíproca, que importa melhor conhecer, para potenciar a evolução analítica e limitar impasses e enviesamentos prejudiciais. Rejeitando e desconstruindo a noção de neutralidade e a “mente isolada” no campo analítico, o seu pensamento traz novos operadores de inteligibilidade à psicanálise, que são em nós suscitados quando evocamos conceitos com que impregna a sua obra como “campo e relação intersubjectiva”, “relação mutuamente constituída”, “estruturas emergentes”, “princípios organizadores da experiência”, “mundos de experiência emocional”, “sentido do self”, “inscrição contextual”, “inconsciente pré-reflexivo, dinâmico e invalidado”, “atitude empático-introspectiva”, “auto-revelação do analista”, “sintonia validadora”, “ligações conjuntivas e disjuntivas”, “transferência evolutiva”, “lugar relacional”, “parentesco na finitude e na obscuridade existencial”, etc… Embora com ligações intimas à filosofia, o seu pensamento inscreve-se numa linha profundamente analítica – ele emerge do próprio coração da psicanálise e do seu conhecimento e clarificação: a relação analítica. Nos últimos anos e obras, projectando-a para uma compreensão sobre o trauma psicológico – e a sua relação com a finitude humana. (David Figueirôa)
– Agradecemos que nos conceda esta entrevista depois de umas jornadas de viagem e trabalho tão intensas. A teoria da intersubjectividade, que o senhor construiu com George Atwood e Donna Orange, entre outros, como um contextualismo fenomenológico, criou algumas tensões com as teorias clássicas em psicanálise, como aquelas entre neutralidade-subjectividade, técnica‐“prática”, intrapsíquico‐interpsíquico, universais‐particulares, etc. Hoje, 28 anos depois de Structures of Subjectivity e 15 anos depois de Working Intersubjectively – Contextualism in Clinical Practice, qual é o seu balanço e quais os principais resultados dessas tensões?
Robert D. Stolorow (RS)- Creio que as tensões vão ficando menos dramáticas à medida que a psicanálise dominante se vai tornando mais fenomenológica e contextual. Se o meu contextualismo fenomenológico é excessivamente absorvido pela corrente dominante, terá que se ser ainda mais radical!
– A partir da sua experiência pessoal de perda e devastação emocional, interessou-se e desenvolveu uma nova teoria sobre o trauma psicológico… Pode dizer-nos quais os aspectos principais da sua teoria do trauma?
RS- Há dois aspectos principais: 1) a inscrição contextual do trauma (context ‐ embeddedness) – o afecto doloroso torna-se traumático quando não encontra um lugar relacional onde possa ser acolhido e integrado e 2) o significado existencial do trauma – ao quebrar os nossos absolutismos e as nossas ilusões evasivas, o trauma coloca-nos cara a cara com a nossa trágica finitude humana.
– Pode dizer-nos em poucas palavras qual é a principal crítica que faz ao modelo cartesiano na sua procura de uma psicanálise pós-cartesiana?
RS- O pensamento da “mente isolada” cartesiana encobre a inscrição contextual de todos os aspectos da experiência emocional humana, de todos os transtornos emocionais e de todos os componentes do processo analítico.
– Como aborda a teoria intersubjectiva os papéis da mãe e do pai no desenvolvimento infantil e a importância da complementaridade entre as figuras feminina e masculina para esse desenvolvimento?
RS- Observamos as particularidades da experiência emocional da criança com cada progenitor e o significado particular que as diferenças de género adquirem numa família particular.
– Na teoria clássica o complexo de Édipo é um modelo central para compreender a psicodinâmica do indivíduo. Como o aborda na sua perspectiva? Utiliza-o no trabalho clínico?
RS- Em vez de o vermos como algo universalmente central, os temas do Édipo são considerados como “emergentes”, que se tornam relevantes em algumas crianças em contextos intersubjectivos particulares.
– Nos últimos 10 anos o seu interesse pela filosofia, que já estava presente antes, parece ter aumentado. Qual a razão da sua preferência por Heidegger? Ainda que a filosofia de Heidegger seja um enorme contributo para compreender as dinâmicas da angústia e do trauma, não considera a obra de Wittgenstein mais importante na crítica ao lastro cartesiano no pensamento ocidental e, também, na psicanálise clássica?
RS- Ainda que a crítica feita por Wittgenstein ao pensamento cartesiano seja importante, é o contextualismo ontológico de Heidegger – o Dasein (“ser-no-mundo”) – que oferece as bases e fundamentos para a minha perspectiva do contextualismo fenomenológico psicanalítico, de uma forma que o contextualismo linguístico de Wittgenstein não alcança. Uma razão importante para isto é que Heidegger considera a afectividade como ontologicamente reveladora e a afectividade está no coração do meu contextualismo fenomenológico. No entanto, quer eu quer os meus companheiros inspirámo-nos em outros filósofos, incluindo Wittgenstein, Gadamer, Merleau-Ponty, Kierkegaard e Nietzsche.
– Quais são, para si, as principais diferenças e semelhanças entre a psicanálise intersubjectiva e outras perspectivas anti-cartesianos na psicanálise contemporânea, como as de Stephen Mitchell e dos relacionais e interpessoais de Nova Iorque? Poderão ser perspectivas convergentes no futuro?
RS- Penso que a diferença principal é que os meus colaboradores e eu quisemos ser mais diligentemente fenomenológicos e contextuais que alguns dos nossos colegas relacionais de Nova Iorque. O kleinianismo residual de alguns desses colegas conserva matizes do pensamento de “mente isolada” cartesiano.
– O senhor e os seus colegas são reconhecidos à influência do pensamento de Kohut e o senhor, pessoalmente, vinculou-se à psicologia do self. O que é que faltava a Kohut para ser um intersubjectivista?
RS- Kohut deu um passo de gigante em direcção ao contextualismo fenomenológico no reconhecimento que fez da profunda e indissociável implicação do contexto na experiência do self e dos “transtornos” do self. No entanto a sua “reificação” do self e a sua doutrina dos “defeitos no self” conservam remanescentes do pensamento da “mente isolada” cartesiana. Também sou crítico quanto à forma como generaliza os seus importantes “insights” na fenomenologia do narcisismo e dos transtornos narcísicos para uma teoria global da personalidade, para a totalidade da psicopatologia e para a totalidade das transferências analíticas.
– Desde a publicação de “Faces in a Cloud” com Atwood em 1979, uma das suas teses mais originais é a de que qualquer teoria psicanalítica – supomos que “psicológica” também – deve ser compreendida a partir do contexto do autor que a elabora, da sua personalidade e da sua história pessoal. Não mereceria Kohut que se escrevesse um novo capítulo do livro sobre ele? E pode comentar porque se irritou com a biografia de Kohut escrita por Strozier?
RS- Desde logo, claro que Kohut merece um capítulo em “Faces in a Cloud”. A biografia sobre Kohut de Strozier pareceu-me mal-intencionada, distorcida para evidenciar e exagerar a patologia narcisista de Kohut. Ademais, num pé de página, Strozier dirigiu essa distorção na minha direcção, acusando-me erradamente, a mim e a Brandchaft, de tomarmos o nosso conceito da “profunda e indissociável implicação contextual”7 do fenómeno de “transtorno limite” de Kohut. Tenho correspondência de Kohut que demonstra que esta acusação é completamente falsa.
– Ainda que o senhor tenha ressaltado em numerosos trabalhos o impacto da perda dramática da sua primeira mulher e as vias para elaborar a dor sofrida, relatou muito pouco outros aspectos da sua biografia pessoal anterior a 1991 que podem ter influenciado o seu interesse pela subjectividade e a inscrição contextualista. Quer dar- nos alguma outra faceta, para além do que publicou recentemente em “The Demons of Phenomenological Contextualism [2012]…”
RS- Não tenho nada a acrescentar neste momento para além do que está em “The Demons…”
– O grande avanço epistemológico da sua perspectiva consiste na sua substituição de uma teoria centrada nas pulsões (drives) por outra centrada nas emoções. Como evoluiu esta ideia nos últimos anos? E como valoriza a teoria dos sistemas motivacionais de Joseph Lichtenberg?
RS- Desde o artigo “Affects and Selfobjects” (1984/85), um volumoso número de trabalhos vem mostrando que se se coloca a afectividade como centro motivacional, automaticamente se contextualiza cada um dos fenómenos de que a psicanálise se tem ocupado tradicionalmente. Gosto da teoria dos sistemas motivacionais de Lichtenberg, ainda que considere o seu desenho de cinco sistemas motivacionais um pouco arbitrária.
– Os intersubjectivos citam muitas vezes os trabalhos de Beatrice Beebe e de outros investigadores contemporâneos do desenvolvimento infantil. Como pensa que este tipo de trabalhos influenciou o seu enfoque psicanalítico e a psicanálise contemporânea em geral?
RS- Essa investigação proporciona um forte suporte à perspectiva contextualista em psicanálise.
– Os intersubjectivos distinguem três formas de inconsciente (dinâmico, pré-reflexivo e invalidado), ainda que na actualidade se diferenciem apenas dois: o dinâmico e o “procedural” (ou “procedimental”). Pensamos que o inconsciente pré-reflexivo corresponde sobretudo ao “procedural”. Pode esclarecer-nos um pouco o significado de “inconsciente invalidado”?
RS- O “inconsciente invalidado” refere-se a experiências afectivas que nunca foram articuladas nem de forma simbólica nem linguisticamente. Muitas vezes toma a forma de quadros psicossomáticos e alexitímicos. O nosso pressuposto é de que para que o afecto seja articulado simbólica e linguisticamente deve receber uma sintonia validadora, confirmatória, reconhecedora, de tipo simbólico e linguístico.
– Em relação com a anterior: “A psicanálise é essencialmente um método para clarificar o inconsciente pré-reflexivo, o que se consegue investigando como a experiência que o paciente tem da relação analítica se organiza de forma inconsciente e repetida, a partir dos significados que se foram formando durante o desenvolvimento psíquico” (Stolorow e Atwood, 1992, “Contexts of Being”). Não será também um objectivo da psicanálise esclarecer o inconsciente invalidado? E, neste sentido, clarificar o invalidado seria afirmar ou validar a experiência que não pôde ser articulada como pensamento? A este propósito, diria que o seu trabalho coincide ou difere do de [Bjorn] Killingmo?
RS- Sim, em cheio! Quanto a Killingmo, não estou familiarizado com o seu trabalho.
– No seu livro recentemente publicado em espanhol “Working Intersubjectively” (“Trabajando Intersubjetivamente”), afirmam que “…não existe um corpo distintivo de teoria clínica nem recomendações técnicas que possam ser derivadas da teoria intersubjectiva…”, que a psicanálise é uma “prática”, uma “phronesis”, e não uma “técnica”, uma “techne”. Não será, no entanto, que existem certos conselhos ou recomendações que se possam dar aos colegas que começam a praticar a psicoterapia? Por exemplo, se escrevesse agora uns “Conselhos ao clínico…” que diria a um jovem colega sobre o uso do divã, sobre a frequência ideal de sessões, sobre a atitude analítica ou outros aspectos?
RS- Para mim, a essência da atitude analítica é que é uma atitude exploradora, de colocar questões. Mas nunca tentaria escrever esse manual, já que considero todas essas dimensões radicalmente dependentes do contexto. Por outras palavras, todas essas recomendações dependeriam da particularidade de cada par analítico.
– Como aborda a teoria intersubjectiva o tema da violência na sociedade, seja no campo público ou na esfera privada?
RS- Creio que a violência, individual ou colectiva, normalmente pode ver-se como reactiva a feridas da grandiosidade defensiva. A violência busca restaurar a grandiosidade que foi quebrada.
– Pode partilhar connosco a sua sensibilidade sobre o mundo humano de hoje?
RS- Creio que o mundo humano de hoje está a sofrer as consequências da grandiosidade defensiva colectiva desenfreada, ao que chamo a “ideologia da ressurreição” que busca a preservação e o restauro.
– O seu pensamento e trabalho são ainda jovens. Por onde pensa que se encaminharão os seus interesses e investigações futuras, no campo psicanalítico ou noutras áreas?
RS- Os meus interesses neste momento estão focados em como os humanos tentamos evadir-nos da tragédia da finitude humana através de várias formas de ilusão metafísica e ideológica e sobre as condições relacionais que podem fazer com que seja mais possível conviver com esta tragédia em vez de a evitar.
– O senhor esteve em Espanha em 2001 e 2002, quando o interesse pela perspectiva intersubjectiva era ainda incipiente. Como percepcionou a evolução, em geral, aqui, e o interesse pela sua teoria dos sistemas intersubjectivos dez anos depois?
RS- Oh, sim, o nível dos discursos agora são muito mais elaborados!
– Muito obrigado pelas suas palavras e ideias férteis.
Alejandro Ávila (Madrid) e David Figueirôa (Lisboa)
(1) Ávila, A. y Figueirôa, D. (2012). Entrevista a Robert D. Stolorow. Clínica e Investigación Relacional, 6(3): 620-628 [ISSN 1988‐2939] [www.ceir.org.es]
(2) Tradução para português: David Figueirôa
(3) IARPP-España (IARPP – International Association for Relational Psychoanalysis and Psychotherapy)
(4) IARPP-Portugal e APPSI – Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica
Principais obras de Robert Stolorow (ordem cronológica):
– Stolorow, R., Atwood, G., 1979, Faces in a Cloud: Subjectivity in Personality Theory. Northvale, NJ: Jason Aronson.
– Atwood, G., Stolorow, R., 1984, Structures of Subjectivity: Explorations in Psychoanalytic Phenomenology, Hillsdale, NJ: Analytic Press.
– Stolorow, R., Brandchaft, B., Atwood, G., 1987, Psychoanalytic Treatment: An Intersubjective Approach, Hillsdale, NJ: Analytic Press.
– Stolorow, R., Atwood, G., 1992, Contexts of Being: The Intersubjective Foundations of Psychological Life, Hillsdale, NJ: Analytic Press.
– Orange, D., Atwood, G., Stolorow, R., 1997, Working Intersubjectively: Contextualism in Psychoanalytic Practice, Hillsdale, NJ: Analytic Press. [Publicado recentemente em castelhano, 2012, no 6 da colecção “Pensamiento Relacional”, Instituto de Psicoterapia Relacional e IARPP España]
– Stolorow, R., Atwood, G., Orange, D., 2002, Worlds of Experience: Interweaving Philosophical and Clinical Dimensions in Psychoanalysis, New York: Basic Books.
– Stolorow, R., 2007, Trauma and Human Existence: Autobiographical, Psychoanalytic, and Philosophical Reflections, New York: Routledge.
– Stolorow, R., 2011, World, Affectivity, Trauma: Heidegger and Post-Cartesian Psychoanalysis, New York: Routledge.