Intemporal como o Inconsciente
“Perspectivas da Psicanálise” é um taco-a-taco entre Otto Rank e Sandor Ferenczi, no Verão de 1922, sobre como a técnica tem preponderância na teoria psicanalítica. Com a graça e curiosidade de que Freud, no Congresso de Berlim, que decorreu nesse mesmo ano, prometera um prémio a quem escrevesse sobre o tema. Mas como em Psicanálise não há prémios, ou melhor, o ganho são os ganhos da viagem, a recompensa ficou por atribuir.
Vi, entre muitos outros, pois claro, dois aspectos muito importantes neste livro: A importância da Psicanálise enquanto experiência vivida por duas pessoas e o grande interesse na relação precoce tomada como imprescindível no trabalho psicoterapêutico, a que Ferenczi chama de história infantil arcaica.
Quanto à experiência em análise, defendem uma técnica activa – e confesso que fiquei com grandes interrogações: esta é a maneira como trabalhamos actualmente?, é algo mais? ou outra coisa? Retomando, defendem uma técnica activa naquilo que chamam os pontos de deslocamento da líbido. Ou seja, são os fenómenos transferenciais que permitem compreender a situação libidinal infantil e reproduzir os elementos essenciais do desenvolvimento infantil perturbado. Ferenczi e Rank insistem em que os movimentos em Psicanálise são Repetição e Resistência. Aqui dá-se uma tremenda mudança, pois é através da experiência vivida, a transferência e contra-transferência, que se dá a “educação do Eu ” e, posteriormente, a “educação das Pulsões” e não através da rememoração, que consideram algo pré-consciente, sem a profundidade necessária. Não se pode rememorar o inconsciente pois ele nunca foi consciente; memória. Parece-me que, ao defenderem esta diferença, colocam a neurose de transferência em outro plano, no do pré-Édipo, das relações precoces. Talvez abram a porta à psicose de transferência ou a afluências transferenciais anteriores à possibilidade de se instalar a Neurose. Se bem percebi, esta mudança, aumenta a indicação para a Psicanálise, estendendo-a a outras psicopatologias fora do campo das neuroses. Confesso que enquanto lia, sem saber bem porquê?, vinha-me à cabeça “Impasse e Interpretação” de Herbert Rosenfeld. Talvez seja, precisamente, por isso, pela receptividade ao paciente sem a necessidade de espartilhá-lo na psicopatologia.
A técnica que apresentam é orientada para a existência do paciente, mais na dúvida e no desconhecido. Não é a procura de algo que se sabe que lá vai estar, mas sim esperar, disponível, o que vier. A temporalidade é algo a ter em conta, como outro dia ouvi dizer o Professor Frederico Pereira, o que se coloca a uma pessoa com 20 anos não é o que se coloca a uma pessoa de 80 anos, do ponto de vista existencial. Escrevem uma coisa interessantíssima que é, a primeira resistência em análise é do Eu, para não entrar em contacto com as pulsões amorosas, e a segunda é da líbido, porque terá de renunciar aos desejos irrealizáveis. Mas, não querendo entrar em filigrana teórica, há nisto tudo uma mudança fantástica que é a condição do Paciente. A certa altura, Ferenczi escreve que se tudo o que perturba a análise é considerado resistência, como afirmou Freud, então, o paciente sentirá uma extrema culpabilidade. O texto coloca o Psicanalista como paciente ou ex-paciente e a seriedade e emocionalidade dessa condição está, ou tem de estar, presente em sessão. Qualquer um dos dois que se encontram numa Psicanálise ou Psicoterapia têm interiorizado o facto de terem sido ou serem pacientes. Julgo que adjectivar isto como relacional fica muito bem. Aliás a personalidade do Analista é já considerada, e relembro que o livro é de 1924, um factor determinante no andamento da Análise. Dão o exemplo do narcisismo do Psicanalista como algo que reduz o Paciente e, com malícia, indicam que Freud considerava o narcisismo uma restrição à Análise. Digo com malícia, porque fazem uma crítica arrasadora a quem é Psicanalista sem ter feito, verdadeiramente, uma Psicanálise, e realçam que a Análise didáctica é, acima de tudo, uma Análise terapêutica. Psicanálise, como terapia, não é fazer um inventário de desengonças ou fixações libidinais, nem verificar uma lista de recomendações para o tratamento da neurose.
Este livro é, também, sobre militância psicanalítica que distingue um saber, que é em si uma convicção profunda, de um saber intelectual. E não vejo distância alguma entre “Perspectivas da Psicanálise” e os trabalhos produzidos, nos nossos dias, por Psicanalistas membros da IARPP. O texto repele o “aburguesamento” da Psicanálise e valoriza os primeiros trabalhos de Freud, que, embora simples, dizem eles, mostravam bons resultados terapêuticos. A Psicanálise não é a constatação do “Complexo de Édipo”, mas a libertação da líbido infantil que estava fixada nos primeiros objectos. A interpretação não pode ser apenas uma tradução, mas um meio para conhecer o estado psíquico do inconsciente. Ferenczi escreve: “Muito em Psicanálise depende de pormenores, acontecimentos, aparentemente, sem significado, como a entoação da voz, os gestos ou a mímica, as trocas de discurso e o seu encadeamento, as palavras do paciente em relação à nossa interpretação”.
A construção da técnica teve, diria, uma intuição inconsciente que resultou. É sobre esta sensibilidade terapêutica de que “Perspectivas da Psicanálise” fala. A sensibilidade do lado do paciente que é ou será Psicanalista ou Psicoterapeuta. Por fim, gostava de mencionar a coragem destes dois homens. Os analisandos de Rank tiveram de fazer outras Análises para se manterem ou serem aceites em institutos de Psicanálise e Ferenczi, no fim da vida, foi considerado, por Ernest Jones, mentalmente doente.
“Perspectives de la Psychanalyse”,
Sandor Ferenczi, Otto Rank, Payot, 1994. 112 pgs.
Filipe Baptista-Bastos