APPSI: Dr. Neil Altman, muito obrigada por ter aceite esta entrevista. É um privilégio tê-lo connosco, tal como foi um privilégio ter ouvido a maravilhosa conferência que fez esta manhã. Agradecemos, uma vez mais, por nos dar um pouco do seu tempo.
Neil Altman: É um privilégio estar aqui.
APPSI: Sabemos que esta não é a sua primeira viagem a Portugal, por isso, gostaria de recuar até 1971. Poderia falar-nos um pouco dessa experiência, do país que encontrou na altura e de como encontra Portugal hoje?
Neil Altman: Claro. Bem, em 1971, estando eu, de regresso da Índia e tendo sido um voluntário do corpo de paz durante quase 3 anos na Índia, viajei, lentamente, pela Europa, de volta para os Estados Unidos, tendo atravessado e parado em Portugal depois de Espanha, e antes de chegar a Paris e Londres. Então, apanhámos um autocarro de Sevilha para Lisboa, e isto aconteceu pouco tempo depois de termos deixado uma aldeia Indiana, da qual nos tínhamos tornado parte integrante durante quase três anos. Chegar a Portugal, vindo de Espanha, recordou-me, de muitas maneiras, a Índia, aquilo que me vem à ideia – e isto já foi há muitos anos e há muita coisa de que não me lembro – mas aquilo de que me lembro melhor é de que, quando o autocarro atravessou uma pequena vila portuguesa, as crianças vieram para a rua e olharam o autocarro, e isso era, exactamente, aquilo que acontecia na Índia. O autocarro e as pessoas dentro do autocarro eram um espectáculo para as crianças, elas saiam para a rua por querer olhar, aprender alguma coisa sobre o mundo exterior. Então aquilo que eu reparei primeiro foi que existia vida rural em Portugal. Tinha sobrevivido, em Portugal, um modo de vida tradicional que não via desde a Índia. E Lisboa, a maneira como recordo Lisboa – eu não era muito politicamente informado na altura, sei que Salazar governava e que Franco governada em Espanha, e havia também o contexto histórico da Guerra Civil Espanhola e toda a questão das ditaduras e do fascismo, coisas de que eu não tinha grande conhecimento. Tinha ideia, em alguma medida, das tensões em Espanha. Por exemplo, quando os Catalães, em Barcelona, faziam as suas danças tradicionais ao Domingo e a Guarda Civil ficava a observá-los de um modo um pouco ameaçador. À parte disso, não conhecia o que era o contexto de uma ditadura naqueles tempos. Tinha reparado no turismo e na comercialização de sítios em Itália, França e Grécia, mas Lisboa parecia ter uma cisão entre uma grande rua, que partia do porto, creio…
APPSI: Provavelmente a Rua Augusta, que vem do rio.
Neil Altman: Sim, essa. E então nessa rua havia lojas orientadas para o turismo, mas, se nos desviássemos um quarteirão que fosse dessa rua, a sensação era medieval.
APPSI: E ainda hoje, talvez, algumas dessas ruas mantenham um pouco dessa sensação…
Neil Altman: Já não encontro essa sensação. Ontem, quando passeava, a sensação que tive foi de um típico centro histórico Europeu, que de um ponto de vista Americano contém História. Poderia ir numa direcção diferente, agora, e falar-vos um pouco dos EUA vs. Europa em termos de História, se quiserem.
APPSI: Claro!
Neil Altman: Então, nos Estados Unidos, em geral, não existe História. Nova Iorque, Filadélfia e Boston têm alguma História mas, na maioria dos casos, poderíamos pensar de que se trata de um país nascido ontem. É só centros comerciais, supermercados, auto-estradas e… parece que na Europa as pessoas vivem muito mais a sua História. Penso que isso é provocado pelo facto de, nos Estados Unidos, a História ser negada e repudiada, devido à escravatura e, especialmente, ao genocídio dos americanos nativos. E então, por exemplo, diz-se que os Estados Unidos são um país jovem enquanto que a Índia e Portugal são países antigos. Mas todos os países são antigos, existe sim, negação e repúdio nos Estados Unidos pela nossa própria História. É como se a História estivesse coberta por betão e como se aquilo que foi construído nos últimos dez, vinte anos, se tenha erguido, tendo todo o sangue da História ficado debaixo de terra, enquanto que, em lugares da Europa, ou, particularmente, em Israel, o sangue está à superfície, os buracos de balas estão nas paredes, e não existe negação ou repúdio… bom não deveria dizer que não existe uma História, mas é muito surpreendente que nos Estados Unidos a História tenha sido encoberta desta forma. Por isso, quando vagueio pelo centro de Lisboa tenho a sensação de que aí há uma história viva, já não me parece medieval, parece-me sim uma história viva… Essa é a minha impressão.
Ema: Focando-nos agora, um pouco, na sua história pessoal, diria que foram as experiências que teve na sua vida, nomeadamente, o presenciar injustiças sociais, que o levaram até à Psicanálise? Ou escolheu estudar Psicanálise por algum outro motivo, e só mais tarde é que o seu percurso pessoal e formativo o levou ao desenvolvimento da sua teoria e a querer mudar realmente o elitismo na intervenção psicanalítica?
Neil Altman: É muito difícil ir à origem dessas coisas, mas penso que o meu interesse pela Psicanálise veio do mesmo lugar, ou de um lugar semelhante, de onde surgiu o meu interesse pela Índia. Eu interessava-me pelo Budismo e pelo Hinduísmo antes de me interessar pela Psicanálise. E penso que tem a ver com algum tipo de pressentimento [inkling]. Existe uma palavra em português para dizer inkling? Como que uma intuição… uma sensação de que há mais na vida do que salta à vista, como um mistério, um sentimento de mistério acerca da vida, que eu encontrei no Hinduísmo e no Budismo e mais tarde na Psicanálise. Uma maneira de olhar além da superfície e para dentro de algum mistério, algum elemento místico. Portanto, eu já me interessava pelo Budismo com 14 ou 15 anos, algo que não sei bem explicar, e, quando descobri a obra de Freud, tive o mesmo tipo de sentimento, como se uma porta abrisse e algo escondido se tornasse, não óbvio… mas como se pudesse entrar nesse inconsciente. Além disso, a justiça social parece ser mais como… nunca me senti bem com desigualdades, reparava sempre nas desigualdades e ficava perturbado, especialmente, a hipocrisia, ou seja, as desigualdades que são aceites, com as quais se vive mas que são negadas simultaneamente. Quando comecei o meu doutoramento em Psicologia, na Universidade de Nova Iorque, o director do programa era um socialista, alguém que tinha fortes valores morais sobre a justiça social e, no entanto, toda a formação era orientada para a prática privada e eu reparei nisso. Reparei, também, que as pessoas pobres, em Nova Iorque, não estavam a ser consideradas, nem as suas questões de saúde mental. Portanto, reparei nisso e não me parecia correcto. Não diria que o director era um hipócrita, mas quando ele descobriu que eu estava a trabalhar no meu primeiro ano e que tinha escolhido trabalhar num hotel onde o Estado colocava pessoas sem-abrigo, ficou preocupado, não fosse eu ficar decepcionado ou assustado ou…
APPSI: Escolheu trabalhar lá?
Neil Altman: Sim, eu escolhi trabalhar lá, não era um requisito, nem estava lá mais ninguém a trabalhar, mas eu não me sentia bem em ser treinado somente para a clínica privada, com as pessoas ricas. Não me parecia bem, nem percebia como as outras pessoas conseguiam aceitá-lo. Por isso não sei como explicar, mas trata-se de uma certa sensibilidade com que julgo ter nascido, ou algo assim…
APPSI: Absolutamente, e isso traz-nos para o enorme salto desde o setting psicanalítico clássico…
Neil Altman: Certo…
APPSI: Até que ponto pensa que a intervenção psicanalítica pode ir? Ou melhor, quão importante considera ser a exploração desse alargamento da intervenção psicanalítica? E pensa que a “sensibilidade”, a que aludia há pouco, deve ser encorajada na formação de futuros Psicanalistas? A verdade é que, muitos contextos de intervenção em saúde mental, parecem carecer de qualquer tipo de intervenção de orientação psicanalítica. Além disso, muitos candidatos mantêm uma prática muito tradicional. Isso acaba por querer dizer que muitas pessoas que poderiam e deveriam ser ajudadas através da Psicanálise não têm acesso a essa ajuda, mas, tem, também, um grande impacto ao nível teórico (sobre aquilo que está efectivamente a ser estudado na prática psicanalítica).
Neil Altman: A questão com a Psicanálise é a Psicanálise ser uma ferramenta tão boa para a exposição da hipocrisia, certo? Incluindo a do próprio, certo? É isso que é bom na Psicanálise. Mas, não quer dizer que os Psicanalistas tenham menos tendência a ser hipócritas que o resto das pessoas. O facto de se conseguir ver estas coisas não oferece qualquer imunidade, significa, apenas, que, se tivermos sorte, e se formos autênticos o suficiente para confrontar honestamente a nossa própria hipocrisia e a hipocrisia do nosso grupo, talvez tenhamos algum vislumbre nesse sentido, apenas para descobrir que há uma nova hipocrisia a aparecer nesse instante… não tem fim. E o processo trata-se de manter a ideia de que se ultrapassarmos um ponto obscuro será apenas para encontrar um novo, e por aí fora… Portanto, em termos da geração mais nova e sobre como formar as pessoas, não penso que se possa treinar as pessoas para isto, julgo que, ou já possuem essa característica ou não. Trata-se da cultura à qual pertencem e encontro isso na Índia, por exemplo, e não consigo mesmo explicá-lo, mas na Índia os estudantes de Psicanálise chegam-nos com uma preocupação pela justiça social antes mesmo de entrarem em qualquer programa, enquanto em Nova Iorque não. Em Nova Iorque as pessoas estão preocupadas sobre como irão pagar as contas e sobre como irão fazer mais dinheiro. Lá a cultura parece ser muito a do fazer dinheiro, o capitalismo. A costa Oeste dos Estados Unidos é diferente, especialmente em São Francisco. As pessoas lá têm uma cultura que promove uma preocupação com a justiça social. A Índia tem isso mas de uma forma diferente. Tenho descoberto que em Portugal também existe essa preocupação. Aliás a Europa em geral e, particularmente, a Europa do Sul vem de uma tradição onde se colocavam fortes valores no bem-estar humano e, agora, os valores de cortar a garganta, impostos pelo mercado, estão a invadir essa tradição, pelo que estamos num momento instável para a Europa do Sul. E desenvolveu-se uma resistência a isso. Mas nos Estados Unidos, em muitos lugares, essa resistência acabou, os valores do mercado entrincheiraram-se de tal maneira… Logo a Psicanálise integra-se em qualquer cultura para a qual imigre, certo? As pessoas hão-de comentar, por exemplo em Nova Iorque quando as pessoas sabem do trabalho que fiz, comentam que é maravilhoso, que bom que o fazes, e pronto, fica-se por aí. Há essa parte não falada do assunto.
Em termos de formação, eu, simplesmente, não sei, porque pode-se treinar as pessoas para fazerem trabalho comunitário, fora do consultório, mas se a preocupação das pessoas for “Como é que vou fazer dinheiro?”, podem até elogiar esse tipo de trabalho, mas não serão influenciados por ele. E, numa parte dos Estados Unidos, as pessoas pagam a suas próprias propinas e existe uma enorme preocupação em conseguir-se que os filhos vão para um colégio privado, o que é muito caro, e isso influencia deveras as pessoas a procurar fazer muito dinheiro.
APPSI: Acredita que haverá uma tendência para que a Psicanálise, ou a intervenção psicanalítica, desapareça do sistema público? Por ser inacessível às camadas mais pobres? Ou existe uma forte sensibilidade por parte do governo para financiar estes programas, ou, então, é muito, muito difícil. Reparamos que, em Portugal, do ponto de vista dos sistemas públicos, a orientação psicanalítica é considerada muito demorada e dispendiosa. Talvez seja, também, responsabilidade nossa por termos dificuldade em provar a importância de tanto do trabalho que é feito na nossa área. Pensa que tenderá a desaparecer ou, por outro lado, talvez a Psicanálise tenha a capacidade de lidar com certos problemas com que outros tipos de intervenção não consigam lidar?
Neil Altman: Primeiro, não penso que a perspectiva psicanalítica conduza necessariamente a terapias de longa duração. Penso que se pode, como por exemplo, com Winnicott, fazer psicoterapias de uma sessão. No seu livro “Clinical Studies in Psychiatry” há uma série de capítulos, e cada um trata de uma Psicanálise de uma sessão apenas, usando a técnica squiggle. Portanto, Winnicott rejeitava estruturas pré-existentes para a Psicanálise. A Psicanálise poderia ocorrer numa única sessão ou em mil; podia ser feita cinco vezes por semana ou então a pedido, como no Piggle. Esse é apenas um exemplo de como todos os tipos de trabalhos podem ser influenciados pela Psicanálise. Agora, será que irá desaparecer do sector público? Eu vejo a Psicanálise como os monges na Idade Média, ou seja, os Psicanalistas estão a preservar um conhecimento que pertence ao passado para que possa ser reavivado um dia. Portanto, neste momento é tudo terapias cognitivas/cognitivistas, mas, as preocupações da sociedade em termos de saúde mental, as que são urgentes, poderão ter que ver com questões como a violência, como neste Colóquio, e se pensarmos em pessoas como… por exemplo, nos Estados Unidos uma pessoa entrou numa escola e disparou sobre várias crianças, o seu nome era Adam Lanza. E recentemente foram revelados vários detalhes sobre as preocupações desta pessoa, sobre a relação com a sua mãe, sobre a sua preocupação com videojogos violentos, armas e por aí… E eu estava a ler isto e pensei “terapias cognitivas com esta pessoa”? Quer dizer, se isto é o que mais preocupa as pessoas nos Estados Unidos, então, eventualmente, a terapia cognitiva ou qualquer terapia breve irá embater contra um limite com o qual não conseguirá lidar. E mais cedo ou mais tarde tornar-se-á necessário abrir a mentalidade pública para o facto de estas coisas não serem, facilmente, compreendidas e de que é necessário abordá-las com uma atitude mais exploratória. Nessa altura julgo que será algo como a Psicanálise a ressurgir. Outra questão é o facto de os Psicanalistas terem este narcisismo: onde existe o ouro puro é a Psicanálise e depois o resto, que é desvalorizado. Mas a Psicanálise pode infiltrar-se em todas as outras formas de terapia, bem como as ideias de transferência, contra-transferência e do inconsciente, que, para mim, são os elementos centrais da Psicanálise. Estas podem infiltrar-se na prática psicofarmacológica. Acho que os Analistas têm de se ajustar ao facto de que valerá a pena se a perspectiva psicanalítica se infiltrar noutras práticas terapêuticas. E que, se não mantiver o nome de Psicanálise, poderá parecer que desapareceu mas, também, terá sobrevivido de uma forma diferente. Não penso que a Psicanálise vá desaparecer mas que poderá perder a sua identidade distintiva, talvez para renascer noutra forma.
APPSI: E qual é o papel que a IARPP pode ter nesta transformação?
Neil Altman: Penso que a Psicanálise Relacional abre o jogo no sentido em que existe a díade, não se trata da mente isolada do indivíduo. Agora temos a díade, que é uma teoria de campo, mas uma teoria limitada. Depois temos o Terceiro, em várias formas. Existe a forma como eu uso o Terceiro no meu livro, referindo-se ao contexto no qual a díade funciona. Outras pessoas usam o Terceiro de formas diferentes, como a Jessica Benjamin ou Thomas Ogden. Mas penso que é possível estender a perspectiva relacional de modo a incluir um ponto de vista sistémico, que já não se centra principalmente no indivíduo, mas no sistema como unidade primária, que constitui os indivíduos dentro dele. Isso está presente, no feminismo, nos estudos culturais e tem existido, também, um interesse em ligar a Psicanálise com esse tipo de analise sistémica. Por isso, penso que essa é uma mudança fundamental que a Psicanálise Relacional sugere mas que ainda não foi, inteiramente, desenvolvida até ao momento.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
Entrevista realizada em 30 de Novembro por Ema Evangelista, Gonçalo Neves e Hélder Chambel
Transcrição: Inês Evangelista e Margarida Horgan
Tradução do inglês: Inês Evangelista