VERDADE, FICÇÃO E NARRATIVA NO CAMPO ANALÍTICO
Congresso FEPAL, 2014
Frederico Pereira
Carlos Nemirovsky
María Alejandra Rey
Um dos núcleos do Pensamento analítico e da práxis analítica residiu na desqualificação daquilo que aparece e na concentração naquilo que se oculta. Compreender um elemento analítico significaria “perceber” o sistema de transformações que levam do “oculto” ao “manifesto”.
Marx, Nietzsche, Freud (a Tríade da Suspeita, P. Ricoeur) põem em causa as evidências textuais para fundar uma Verdade Outra, residente no mundo obscuro do “subtexto”, do texto-a-revelar.
Esta desqualificação daquilo que aparece é a raiz de uma hermenêutica da suspeita e o processo de revelação da verdade coincide com a dinâmica da Interpretação.
Vários caminhos da Psicanálise, na teoria e na prática, afastaram-se do processo da suspeita, da interpretação e da revelação, pondo ao mesmo tempo em causa a própria ideia de Verdade (Verdade da Interpretação ou Interpretação Verdadeira).
A importância da Construção em Análise (S. Freud, S. Viderman) foi cada vez mais tida em conta ao mesmo tempo que a exploração da natureza do processo analítico foi surgindo, cada vez mais, no primeiro plano.
O que acontece no Encontro Analítico? O que define o Campo no qual esse Encontro se vai realizando e quais os processos de transformação que nele estão em curso? Qual a relação entre as enunciações presentes (fala do analisando/fala do analista) e a “realidade”? De que “realidade” se trata no quadro analítico? Como se constitui um processo enunciativo sem que haja colonização linguística ou emocional? (E.Rocha Barros, 1994) no par analítico?
Contributos oriundos de outras áreas do saber (Semiótica, Teoria dos Mundos Possíveis, Teoria dos Mundos de Ficção (Fictional Worlds), etc), associados ao relativismo perspectivista inaugurado por Nietzsch vieram a obrigar a repensar a “Realidade”, sobre a qual opera o processo analítico, e a relação entre os enunciados (na sua dimensão semântica, prosódica, poética, rectórica…) que nele emergem e a “Realidade” para que reenviam.
Ao Mundo (externo ou interno) “tal como ele é” acrescentam-se outros Mundos Possíveis, sempre de natureza alternativa e, por vezes, mesmo contrafactual (“Modos como o Mundo poderia ter sido”, Platinga).
Quanto à “Realidade”, o centro da análise foi-se descentrando do mundo intrasubjectivo do analisando para a ele se acrescentar, como epicentro do processo analítico, a dinâmica da Relação, os processos intersubjectivos e a construção da intersubjectividade como elemento terceiro do campo analítico (Terceiro analítico, Ogden).
A própria representação do “Mundo-interno-na-sua-relação-com-o-Mundo” se modificou, a Unidade cedendo o passo à Pluralidade. O Si passa a ser visto como um poliedro com um número infinito de faces. Cada momento do ‘tempo’ analítico corresponde ao encontro de um número finito de faces dos poliedros que constituem o par analítico. Assim sendo, a expansão em infinito das organizações poliédricas do Si encontra um limite. A esta limitação corresponde, no desenvolvimento narratológico, a narcotização igualmente limitadora, a cada momento, dos mundos possíveis – sendo esta narcotização que permite a elaboração de “cadeias sequenciais” de “factos seleccionados” (Bion, 1965), com uma finalidade de transformação (Antonino Ferro/ 2002) e a respectiva abertura ao desenvolvimento narrativo.
Neste quadro, a “Verdade” torna-se evidentemente provisória, e temporalmente contingente, não só devido à permanente reordenação por efeito da nachtraglichkeit mas também devido a determinismos contextuais (D.Orange).
Mas, mais do que isso, é o próprio conceito de “Verdade” em Psicanálise que se afasta das teorias dominantes da Verdade.
Os modelos referencialistas da Verdade são inaplicáveis ao campo e ao processo analíticos, não sendo possivel falar de correspondências entre enunciados e factos. Os modelos ditos da coerência seriam por outro lado arbitrários, a simples coerência não podendo ser “garante de Verdade” no processo analítico.
A “Verdade” passa a ser entendida como uma propriedade emergente do campo analítico e da relação. Ela não é uma “descrição adequada de um mundo”, mas antes a expressão de um Sentimento de consistência duma intuição de estar vivo, promovidos pela elaboração intersubjectiva (Terceiro Analítico, Ogden).
Para além de algum construtivismo fácil, a “Verdade Analítica” é um Processo-em-desenvolvimento, aberto à expansão narrativa e à transformação relacional.
A “história” (verdadeira, falsa, ou plural em lógicas polivalentes) é substituída por um triângulo cujos vértices são a história (factos brutos não pensados), a fantasmatização e a relação.
O objecto analítico é assim ele próprio uma “criação” do campo analítico.
A hermenêutica da suspeita, vê-se assim substituída por uma hermenêutica da confiança (D. Orange).
Situações clínicas, onde o quadro conceptual anterior se projecta, serão apresentadas e introduzidas num espaço público, o que dará origem a novas transformações substantivas e narratológicas dos objectos analíticos.